domingo, 23 de novembro de 2014

Ponte da raiva

Na primeira vez em que passou pela Pont des Arts, em Paris, Julia achou graça daquele amontoado de cadeados com nomes e declarações em diferentes tamanhos e vindas dos mais distantes países. Mais graça ainda ela achou ao ver os ambulantes nos arredores vendendo muitos dos cadeados que mais tarde seriam colocados ali, sob juras de amor eterno. “O amor tem preço”, divagou ela, pensando em como estariam hoje os tantos casais que atiraram as chaves ao rio Sena durante o momento da promessa. Estariam juntos? Por quais crises teriam passado? Ainda amavam-se loucamente, ou hoje eram apenas lembrança na memória um do outro? Casaram-se? Tiveram filhos? Adotaram cachorros?

Tudo isso passava pela cabeça de Julia enquanto ela também sonhava em ter um cadeado com seu nome na ponte. Naquele dia, contava as horas para rever Luis. É bem verdade que ela não tinha atravessado o oceano por causa dele. Fazia questão de deixar isso claro. Mas também é certo que ela sonhou com aquele encontro. 

Assim como é certo que algumas das amigas mais próximas alertavam que aquilo podia dar errado. “Por isso, Julia, aproveite esse mochilão. Conheça quem você puder conhecer. Faça tudo o que tiver chance de fazer”. Julia ouvia, fazia que concordava. Mas preferia acreditar na história que havia criado. Que Luis iria render-se a dias de paixão que marcariam o final de sua viagem de dois meses. E que aquilo poderia até ser o começo de uma vida nova para ela em outro país.

Ela não tinha base nenhuma pra acreditar nisso. Dois meses antes, Luis a viu em Londres, Inglaterra, local que foi a casa de Julia por alguns meses. A visita aconteceu depois de mais muitas horas de diálogos online e de leves, quer dizer, médias, não, pesadas insistências de Julia. Luis não sabia dar respostas diretas. E isso deixava Julia confusa, principalmente depois de tantas horas e confidências gastas online. Ela era direta. Ele, não.

A primeira visita aconteceu. E, embora ela tivesse se esforçado para que tudo fosse lindo, a despedida teve gosto amargo e a memória de uma confissão com a qual Julia não sonhava, apesar das evidências. “Moramos em cidades diferentes. Não vamos criar expectativas”.

Expectativas foram a base de alimentação de Julia por meses, talvez anos. Ela sempre esperou por algo. Na infância, ela ansiava a chegada do Natal. Acreditou em Papai Noel por muito tempo. Assim como no coelhinho da Páscoa. Ela esperava janeiro para comemorar seus aniversários e sonhava com o primeiro dia de aulas para começar a rabiscar os cadernos com cheiro bom de papel novo. Ela invejava as amigas que viviam pregando o “pega, mas não apega”. Ela não conseguia entender como era possível a tal da pegação sem apego. Por isso, dizia preferir ficar sozinha. Não era bem preferência. Talvez inadequação. Mas o discurso funcionava.

Julia tentou trabalhar com esta frase e com o olhar despropositalmente descrente das pessoas para quem ela contava essa história. Não eram muitas. Mas eram todas espertas o suficiente. Ao menos, naquele momento, mais sensatas que Julia.

Depois de andar uma boa parte de Paris, Julia voltou para o hostel e leu as mensagens do dia. Uma delas, enorme, vinha de Luis, avisando que a esperava, mas que ela não viesse com as tais expectativas. Porque ele havia conhecido outra.

A espuma do colchão pareceu criar pregos. A cabeça da viajante não saía da frase central da longa mensagem. E ela só tinha um dia e meio para decidir se de fato iria para a casa de Luis ou não.

No dia seguinte, a ponte dos cadeados não recebeu o mesmo olhar benevolente da turista brasileira. Seu desejo era o de ter uma bomba para explodir todos aqueles apetrechos coloridos, amontoados e, por quê não, fakes. Tudo aquilo era falso, na cabeça odiosa de Julia, que viu-se desprezada e abandonada, com um oceano de distância do colo da mãe. Àquela época, não sabia que a prefeitura de Paris até concordava com ela, mas não pelas mesmas razões. Os cadeados forçavam a carga das grades da ponte, e provocaram até a queda de um pedaço delas no Sena.

Em prantos, ela não se importava se parte da horda de turistas chineses a olhava com pena ou com medo. Julia queria sumir. Ou se apegar a todas as lembranças boas daquele mochilão. O que só aconteceria meses depois. Assim com outras tantas coisas interessantes. Mas, àquela altura, a Cidade-Luz respirava aliviada com o fato da turista brasileira não deter nenhum explosivo.

terça-feira, 30 de julho de 2013

Gonna get better

Julia gostava de música como mulher gosta de chocolate em TPM. Muitos momentos da vida para ela tinham trilhas sonoras. Ainda que os acontecimentos tivessem ocorrido em silêncio ou em um barulho infernal, ou com muitas pessoas conversando ao mesmo tempo. Para aquela época boa da pré-adolescência, ela lembrava de uma música brega do Jon Secada. Não tem importância o fato de o primeiro beijo ter acontecido atrás da escola, ao som do caminhão de gás. Assim como a oitava série, para ela, tinha a lembrança de Mr Jones, do Couting Cross. “When everybody loves you / You can never be lonely” era o melhor trecho, que ela descobriu o significado após ver o dicionário.

A memória auditiva e afetiva seguiu acompanhando a jovem adolescente, que se tornou uma adulta que sentia conforto ao ouvir algumas trilhas sonoras. Sentia-se amparada por alguns CDs, e gostava de repetir como mantras alguns refrães que eram mantras de fato “nothing is gonna change my world”, dos Beatles.

Ela aprendeu a amar Beatles tardiamente, e com uma forcinha das releituras gravadas para a trilha sonora do filme "I am Sam". “Two of us” tinha a letra que ela sonhava para um relacionamento que ela considerava perfeito. E a voz do lindíssimo Eddie Vedder com “You´ve got to hide your love away” parecia abraçá-la quando ela se culpava por não conseguir terminar um texto que deveria ter sido entregue no dia anterior.

Mas tinha uma música que Julia tinha até medo de ouvir. Era “Fidelity”, de Regina Spektor. “I´ve never loved nobody fully / Always one foot on the ground” era a descrição dela própria e de seu modo de agir com esse terreno tão amedrontador. “And I protected my heart trully” era a coisa mais verdadeira a respeito de si própria que ela já tinha ouvido em uma música. E ela de verdade ouvia todas aquelas vozes na cabeça, tal qual a música dizia em inglês, e se perguntava quando é que ia viver uma história linda, não como a de novelas ou contos de fada, mas talvez como a dos filmes bacanas e, melhor ainda, como a que as amigas estavam vivendo.


No meio de tantas vozes, Luis descobriu que Julia gostava de música. E passou a compartilhar diariamente diferentes links de bandas novas, descobertas na Europa – o continente-sonho de Julia. E ela amava tudo (ou quase tudo) o que ouvia. E queria saber mais sobre aquele moço quieto que conhecia tanta coisa bacana. O problema era que ele estava no mesmo continente das bandas descobertas. Enquanto Julia continuava habitando uma cadeira em um escritório de São Paulo, sem ter tanta certeza que a promoção recebida há alguns meses – tão festejada na época – era mesmo a melhor coisa para a sua vida naquele momento.

domingo, 20 de janeiro de 2013

O salto


Julia transparecia calma e equilíbrio. Equilibrada, de fato, ela era. Mas sua calma era apenas aparente. Os gestos educados e o tom de voz baixo escondiam um turbilhão de dúvidas multiplicadas pela ansiedade que volta e meia invadia seu peito, especialmente em situações nas quais não era mais possível ter nenhum controle. Como os relacionamentos afetivos.

Todos diziam que ela era bonita e inteligente. Teve dois grandes amores na vida. Com o primeiro deles, nutriu ódio, rancor e, por último, desprezo, quando percebeu que não valia mais a pena cultivar nada. Por outro, nutriu algo muito mais platônico do que prático. Via sinais em tudo, mas não queria transparecer nada, porque acreditava já ter sofrido tudo o que podia com o amor anterior.

A vontade de não transparecer nada prevaleceu e, claro, o segundo amor virou amigo, como tantos outros amores possíveis que entraram em seu círculo de amizades. Julia sempre foi boa ouvinte, e descobria que tinha perdido o amor possível quando os candidatos começavam a confidenciar sobre outras mulheres. Engolia a seco, mas seguia ouvindo. Enquanto isso, martelava-se mentalmente sobre mais uma derrota. Mais um amor perdido, mais uma amizade no seu círculo.

Distribuía conselhos entre as amigas, que sempre a procuravam. Mas quase nunca usufruía de suas próprias dicas. Tal qual um padre que celebra muitos casamentos, Julia sabia de vários sinais que indicariam se as relações teriam futuro ou não. E já havia se conformado com um celibato, tal como os padres. Já estava acreditando que não encontraria alguém que a dissesse as coisas lindas que gostaria de ouvir. Que a mandasse flores e que dissesse que a amava – isso nunca havia acontecido com Julia. E essa era outra dor que ela engolia a seco, em cima de um salto imaginário que a levava pra longe e para o alto. Tão alto que ninguém a alcançava.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Copos


Luis era considerado muito inteligente por qualquer pessoa que o conhecesse e reunia todos os atributos visíveis para isso. Era bom de matemática na época da escola, tirava as melhores notas na faculdade e se tornou um profissional muito bem sucedido em uma área dominada pelos famosos nerds: a computação. Na realidade, o nome certo era Tecnologia da Informação, TI ou IT no exterior. Mas, para a família e os amigos leigos, continuava sendo computação.

Gostava de festas e de estar entre pessoas. Mas não conseguia fazer amigos com facilidade. Era quieto, tímido, e pensava muito antes de falar – como todos os quietos e tímidos. Achava que uma câmera brotaria do chão assim que ele falasse uma bobagem, transmitindo mundialmente a asneira dita, ou a piada sem graça. Por isso, pensava antes de dizer uma frase em uma turma maior. Pensava tanto que não dizia. De tanto pensar, geralmente via outras pessoas arrancarem risos da turma ao falarem exatamente o que ele tinha pensado. E se martirizava ainda mais pela timidez idiota.

Tanta vergonha escondia um rico conteúdo, adquirido com leitura, filmes, músicas e viagens. Os poucos (e bons) amigos sabiam de tudo isso, e os melhores não zombavam desse traço. Começar era difícil, todos sabiam. Então, o melhor jeito de se preparar caso arriscasse um começo (de conversa, de olhar, de história) era ter conteúdo. Em algum momento, isso daria certo.

Pra piorar, bebia pouco. Não conseguia passar de um copo de qualquer drinque. Uns goles a mais de cidra em uma passagem de ano, durante a adolescência, o traumatizaram contra os efeitos do álcool dali em diante. Então, para não ser pressionado, preferia ficar com um copo só a noite toda.

Mas naquela festa, via que copos não eram problema para Julia. Aquela moça de traços delicados sabia a arte de esvaziá-los sem perder a compostura. Transitava por toda a festa, parecia conhecer a maioria dos convidados, ria, dançava, e até com ele ela já tinha conversado.

Julia também sabia que começar uma conversa era difícil, uma arte para poucos. Sua família dominava essa arte. O que a levou a aprender a puxar papo quando necessário. Ela também sabia o que era ser considerada tímida, especialmente perto dos parentes faladores. Aliás, era até mais cômodo parecer quieta perto deles. A disputa seria desleal.

No entanto, aquela festa não era dominada pelos parentes, e sim pelos amigos de Luis e Julia. Ambos sabiam um do outro. Mas disfarçavam. E Julia perguntava a Luis sobre coisas das quais ela já tinha conhecimento. Queria dar a chance àquele moço bonito, educado e bem arrumado (especialmente naquela festa) de contar um pouco de sua vida. Trocaram algumas palavras, até alguém chamar Julia para outra roda de conversa.

Enquanto isso, Luis se arrependia de não ter dado respostas mais elaboradas, que poderiam prender a moça de cabelos encaracolados mais alguns minutos diante de seus olhos.

O cartomante


Tal qual a cartomante que mudaria a vida de Macabéa em “A Hora da Estrela”, o adivinho estava disposto a ter a atenção de Julia naquela manhã. A moça tinha olhar sonolento, mas preocupado, e uma aura de quem estava tensa e precisando de cuidados. Parecia estar chegando aos 30, e com esse olhar, tinha o perfil típico de quem procurava os trabalhos que ele prestava. Será que já tinha casado? Mulher que não casou até essa idade também gosta de procurar cartomantes. E arriscou pedir uma informação para a moça.

“Por favor, aonde fica a estação Trianon?”, ouviu Julia. Ela estranhou a pergunta, porque ele estava quase em frente à estação, e começou a balbuciar uma resposta, até ouvir uma saraivada de perguntas com respostas. “Você tem uma santa muito bonita na cabeça, mas você é infeliz no amor, não é? É sim, a gente vê. Você foi traída, não está com quem ama, perdeu ele pra outra e sua mãe está doente”.

Aquela metralhadora verbal não fazia sentido para a moça, que não abandonava a expressão blasé. O que foi o fim para o Cartomante. “É uma pena que vocês não acreditam na gente. Cuide de sua mãe, ela precisa. E você precisa fazer um trabalho pra sua vida se abrir para o amor”. A expressão de Julia mudou e ela teve vontade de enfiar o guarda-chuva na cabeça do Cartomante. Mas limitou-se a dizer: “A estação Trianon a alguns passos daqui. Tenha um bom dia”.

Apesar do olhar blasé, algumas coisas ecoaram no peito de Julia naquela manhã. Era fato que ela não tinha um amor e que ela já havia sido traída. Mas quem nunca foi traído na vida, especialmente perto dos 30?

Naquele dia, Julia fez um desafio para o universo. Se nada em sua vida acontecesse em um mês, ela procuraria um cartomante. Mas não aquele picareta, que tinha roubado sua paz. 

domingo, 21 de outubro de 2012

Pé no chão


Julia não sonhava em ter um carro. Até já quis comprar um, mas não via utilidade – pelo menos não com a vida que levava hoje. Não tinha grandes problemas em utilizar transporte público. Não via grandes absurdos em se espremer em ônibus ou metrô. Não achava bonita aquela superlotação, é fato. No fundo, aquele era o seu pé no chão diário. Quanto mais avançava na carreira, mais queria sentir de onde vinha.

Ouvira em uma palestra, dias atrás, que uma pessoa passa a vida brigando ou confirmando a própria história. Antes de ouvir esta frase, Julia já havia escolhido a segunda opção. Um pouco por orgulho da própria trajetória. E outro pouco para se posicionar. Se for para alguém debochar, que seja eu mesma, pensava. E ninguém mais ousava falar sobre a distância do bairro no qual ela morava, da escola pública na qual estudou ou da pouca escolaridade dos pais. Ela mesma imprimia o posicionamento sobre a própria vida.

Tanto conhecimento empírico a fazia questionar sobre o que era ensinado na vida acadêmica. Via e ouvia tanta bobagem dos andares de cima que se perguntava, quase diariamente, de que valia tanto tempo perdido em salas de aula. Talvez por isso não tivesse escolhido fazer uma pós-graduação, mesmo depois de tanto tempo formada.

Sua vida era uma incógnita para os vizinhos mais próximos. Cordial, educada, mas nunca aberta a diálogos que ultrapassassem o “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite”. Ou o “como vai sua mãe?”, sempre respondido com um “está bem, graças a Deus”. Ele, o Todo Poderoso, era a senha para que os passos rápidos não fossem quebrados.

Sonhava sim. Mas já achava que os sonhos não tinham mais lugar no mundo em que vivia. Ela, talvez, já não tivesse mais lugar naquele mundo. Tal qual a Macabéa de Clarice Lispector, via-se em uma existência compulsória. Pensava umas bobagens, as transformava em piada no Facebook e seguia a vida. Sem saber para onde. Sem saber porquê.

Até um cartomante cruzar seu caminho em uma manhã nublada, fria e estranha.

sábado, 20 de outubro de 2012

De novo

A gente mal consegue atualizar um blog e resolve criar outro quando (quase) ninguém mais lê um. Pensando bem, que ótimo!

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Aviso express: este espaço será dedicado à ficção. Qualquer semelhança é pura fonte de inspiração.